PRIMEIRA GRANDE ENTREVISTA DO NOVO PRESIDENTE DE ANGOLA

“Mimoso” era o nome pelo qual era co­nhecido durante a infância no Lo­bito, onde nasceu há 64 anos. Desta cidade portuária vai para o interior de Angola para onde o pai foi des­terrado pela PIDE. É na antiga cida­de de Silva Porto, prestes a concluir o Curso Geral de Mecânica, na Escola Industrial, que sabe da existência do golpe ocorrido a 25 de abril de 1974. A queda em Portugal do regime co­lonial leva-o a alistar-se nas FAPLA — antigas forças armadas do MPLA —, onde faz carreira como comissá­rio político até ascender, em 1998, ao cargo de secretário-geral do par­tido. Depois de uma longa travessia do deserto, foi eleito há um ano Pre­sidente de Angola e inicia uma vaga de reformas que, após 38 anos de go­vernação, põem em causa o poder do clã de José Eduardo dos Santos. Em vésperas de realizar a primeira visita oficial a Portugal, em entrevista ex­clusiva ao Expresso, João Lourenço diagnostica o pesado fardo herdado do antecessor, aponta os caminhos a trilhar para ultrapassar a crise que assola Angola, e traça novos desafios para o aumento da cooperação entre os dois países.

É hoje Presidente da República. Antes de chegar aqui, no primei­ro grande embate político, em 1998, perdeu para Lopo do Nascimento a disputa do cargo de secretário-ge­ral do MPLA. Como reagiu a essa derrota?

Na vida política, que não é uma linha reta e tem altos e baixos, isso é ab­solutamente normal. Por esta razão, pode perder-se uma batalha sem per­der a guerra. Foi uma disputa interna, que considerei irrelevante e o impor­tante é que, depois disso, acabei por assumir outras importantes funções quer a nível do partido quer a nível do Parlamento.

Diz que assumiu importantes fun­ções e uma dessas funções foi a desecretário-geral do MPLA. Com a sua ascensão à segunda posição na hierarquia do MPLA, sentiu algum sinal de abertura para entrar para a corrida à sucessão de Eduardo dos Santos?

Enquanto fui secretário-geral, con­trariamente ao que se diz, nunca am­bicionei o cargo de Presidente da Re­pública. Naquele ano e nos anos ime­diatamente a seguir, não havia, de resto, eleições gerais à vista. O que fiz na altura, em resposta a uma per­gunta de um jornalista, que pretendia saber a minha opinião sobre as decla­rações do então Presidente [anuncia­ra que não mais seria o candidato do MPLA], foi dizer que as suas decla­rações eram sérias, que o considera­va uma pessoa séria e que iria honrar a sua palavra.

A verdade é que foi necessário espe­rar 17 anos para ver José Eduardo dos Santos realmente honrar a palavra e abandonar o poder…

Houve pessoas mal-intencionadas que viram na minha resposta a inten­ção de me candidatar a um lugar que não estava disponível.

Depois de uma longa permanência no Parlamento, há dois anos, ingres­sa no Governo pela mão de Eduardo dos Santos, para exercer as funções de ministro da Defesa. O que é que esse regresso representou para as suas ambições políticas?

Era uma missão a cumprir e julgo tê­-lo feito da melhor forma. Não era o único ministro em funções e não vejo por que razão só o ministro da Defesa seria o único a ter ambições. Até po­deria ser exonerado.

Mas ter ambições políticas não é ne­nhum crime…

Claro que não. Aceitei ser ministro independentemente de saber o que iria ser a seguir.

A sua nomeação para a pasta da De­fesa agitou as águas políticas…

Não sei porquê. Pela Defesa passaram vários ministros, eu não era o primei­ro nem seria o último…

Depois disso foi indicado para suce­der a José Eduardo dos Santos. Essa indicação surpreendeu-o ou era mais ou menos previsível?

Se fui indicado foi porque quer José Eduardo dos Santos quer o MPLA reconheceram em mim qualida­des para poder ser candidato à sua sucessão.

Depois de Eduardo dos Santos ter estado 38 anos aos comandos do Go­verno de Angola, a passagem de tes­temunho, em menos de meia hora, surpreendeu muita gente. Também o surpreendeu a si?

Para ser sincero, a mim também me surpreendeu.

Não era, portanto, isso que esperava…

Não, esperava uma verdadeira passa­gem de pasta em que me fosse dado a conhecer os grandes dossiês do país e isso, de facto, não aconteceu.

E achou isso estranho…

Não tenho que me lamentar se volun­taria ou involuntariamente nada me foi apresentado. Era minha obrigação ir atrás dos dossiês e conhecer a fun­do o que se estava a passar.

Quem foram as pessoas que mais de perto trabalharam consigo para ter acesso a esses dossiês?

Andamos na política há muitos anos e, conhecendo os cantos da casa, fo­mos vasculhá-los…

Foi fácil?

Foi difícil. Estivemos diante de uma anormalidade com despachos feitos em vésperas da minha investidura, nomeadamente, entre outros, sobre o porto da Barra do Dande, para fa­vorecer quem pretendiam favorecer. Nada me foi dado a conhecer, apesar de ser o Presidente-eleito…

Tudo isto está já ultrapassado?

Sim, claro. Com base nas descober­tas que fui fazendo, num curto espaço de tempo, imprimi uma dinâmica de trabalho jamais vista com importan­tes reformas em praticamente quase todos os domínios.

Como gere o facto de ter um vice­-presidente da República que não foi uma escolha pessoal, mas antes im­posto pelo seu antecessor?

Não é o caso. Houve a tentativa de im­posição de outras figuras para outros cargos, nomeadamente o cargo de mi­nistro de Estado e chefe da casa de se­gurança, a que me opus de forma fir­me. Caso tivesse acontecido o mesmo com o cargo de vice-presidente ter­-me-ia também batido ao ponto de não aceitar tal imposição. Se consegui que não me impusessem um ministro de Estado, também não aceitaria que me impusessem o vice-presidente…

Como é a vossa coabitação?

Pacífica.

No entanto, Bornito de Sousa não é uma escolha sua…

Não temos de trabalhar só com os amigos, conterrâneos ou familiares. Temos, isso sim, de trabalhar com patriotas e cidadãos que defendem, não a minha causa, mas a causa do povo angolano.

José Eduardo dos Santos, em pri­vado, tem manifestado arrependi­mento em relação à indicação do seu nome para lhe suceder.

Se a afirmação é verdadeira, a questão não tem de ser colocada a mim mas a ele próprio. Talvez ele possa jus­tificar por que razão é que tem esse sentimento.

Sente que o traiu?

Não me fale em traição. São conhe­cidos os que traíram a pátria, a na­ção conhece-os, sabe quem são e o que fizeram.

Vai levá-los a tribunal?

É para a história registar.

Elegeu a cruzada contra a corrup­ção como uma das prioridades da suaestratégia governativa. Uma das pri­meiras decisões que tomou foi a de afastar os filhos do antigo Presidente de importantes centros de decisão política, económica e financeira, co­mo a TPA, a Sonangol, a Sodiam e o Fundo Soberano. Porquê?

Não afastei filhos de ninguém. Afas­tei quadros, que são cidadãos na­cionais. O afastamento desses qua­dros obedeceu aos mesmos critérios que levaram ao afastamento de ou­tros quadros. Quantos quadros fo­ram exonerados ou nomeados desde que tomei posse como Presidente? Dezenas. É injusto e um desrespeito para com a família dos outros, que tendo também pais, estes estariam igualmente no direito de perguntar por que razão os seus filhos foram exonerados…

No caso de Isabel dos Santos, uma empresária que até tem criado mi­lhares de empregos, não era possível encontrar uma solução negociada?

Não trato ninguém como pessoas especiais. Para mim não há pes­soas especiais. Entendi que a So­nangol merecia outro Conselho de Administração e assim o fiz, e não estou arrependido de o ter feito. Se tivesse de o fazer de novo, fá-lo-ia.

Está satisfeito com o novo Conselho de Administração da Sonangol?

A análise que faço é que a Sonangol está melhor do que estava.

No combate à corrupção, conta com uma nova Procuradoria-Geral da Re­pública (PGR). Na posse de inúmeros e comprovados casos de gestão da­nosa a vários níveis do poder central, provincial, municipal, empresarial público e das Forças Armadas, está em condições de garantir que irá le­var estes casos todos até às últimas consequências?

Quem vai levar esses casos a tribunal são os órgãos de Justiça, a começar pela PGR. Não são os políticos. Es­tes procuram apenas cumprir e fazer cumprir a Constituição e a lei no ge­ral. Nos casos particulares de corrup­ção, essa missão não cabe aos políti­cos, cabe aos órgãos de investigação, Ministério Público e aos tribunais. Só eles é que se podem pronunciar até onde é que estes casos podem ir.

Ao tomar posse há um ano, como encontrou os cofres do Estado?

A crise instalou-se no nosso país por volta de 2014 e quando fui empossa­do ela estava no auge. Como se isso não bastasse, ainda houve a tentati­va de retirada dos parcos recursos do Estado de cerca de 1,5 mil milhões de dólares para serem depositados numa conta no exterior de uma empresa de fachada. Foi uma jogada de alto risco que, felizmente, graças à colaboração das autoridades britânicas, consegui­mos fazer abortar, depois de terem saído 500 milhões de dólares. Esta é a situação que encontrámos: os cofres do Estado já vazios com a tentativa de os esvaziarem ainda mais!

Hoje, o cerco à corrupção estende­-se ao confisco de bens dentro e fora do país daqueles que se oponham ao repatriamento voluntário de capitais ilicitamente saídos de Angola. Tem noção do montante em causa?

Nestas situações não se tem o valor exato e, muitas vezes, nem aproxi­mado. Sabe-se que serão recursos avultados. Conhecemos experiências idênticas, como a da Nigéria, mas o importante é haver vontade de rea­ver esses recursos. Vai ser um tra­balho árduo, em que o Estado vai ter que contratar serviços de especialis­tas na matéria, os chamados caçado­res de fortunas. O Estado vai ter que fazer acordos judiciários com outros Estados, como o que fez com Portugal para, desta forma, em várias frentes, ir apertando o cerco até que se des­cubram os esconderijos do dinheiro de Angola.

Vai ser um processo longo?

Sim, vai ser um processo longo. Isto vai acontecer em maior ou menor medida, e as pessoas que não pensem que em janeiro de 2019 vamos anun­ciar: olhem, recuperámos todo o di­nheiro que saiu de Angola ao longo destes anos…

Sendo Angola, perante alguns países, obrigada a provar quem prevaricou, as autoridades angolanas já têm em sua posse essas provas?

Temos de trabalhar em conjunto com as polícias, os serviços secretos, as unidades de informação financeira, os bancos estrangeiros, etc. Não posso ser mais claro do que isto, não posso dizer se já estamos a fazer isso ou se vamos fazer. O simples facto de ter­mos dado uma moratória de seis me­ses, alguns talvez tenham já tentado ludibriar as autoridades…

Já há angolanos a repatriar dinheiro voluntariamente para Angola?

Que eu saiba não.

E não admite que perante a gravida­de de alguns desses casos, praticados alegadamente com a chancela do an­tigo Presidente, este possa um dia vir a ser chamado a depor em tribunal?

Há um estatuto dos ex-Presidentes em que estes, seja qual for a situação, durante um certo período, não po­dem ser incriminados. Por outra ra­zão, se os crimes são cometidos por outrem, quem os cometeu que assu­ma a responsabilidade. Se alguém co­meter um crime hoje, quando ama­nhã deixar de ser Presidente da Re­pública que ninguém me diga que eu sou responsável por isso; quem co­meteu o crime que o assuma.

José Eduardo dos Santos propiciou a muitos dirigentes do MPLA, incluin­do aparentemente a si, benesses. Não teme que, numa situação de fragili­dade e de desespero, ele possa vir a terreiro comprometer publicamente muita gente a quem deu oportunida­de de negócios e que agora lhe vira as costas?

Acho que prestaria um grande serviço à nação. Eu encorajá-lo-ia a fazer isso mas, mesmo que não denuncie quem beneficiou do banquete, as figuras que de forma vergonhosa delapida­ram o erário público são conhecidas…

Sente-se à vontade com os seus ativos?

Não tenho receio nem necessidade de os esconder, e, por isso, estão aí, fo­ram adquiridos ao longo de anos, não sou milionário e muito menos bilio­nário. Não me sinto parte do grupo de pessoas que, sem justificação, têm grandes fortunas.

É verdade que o combate à corrup­ção tem sido aplaudido por amplos sectores da sociedade, contudo a população agora quer mais. Exige emprego, saúde e educação de quali­dade, a economia continua à procura de um rumo. Por tudo isto, para a população angolana só o combate à corrupção já não chega. Como pensa agir?

Não me está a dizer para abandonar­mos o combate à corrupção para nos dedicarmos só à economia. Temos que fazer tudo em simultâneo, e é o que estamos a fazer. Não consumi­mos 24 horas do dia a pensar e a falar do combate à corrupção. Antes pelo contrário, consumimos grande par­te do nosso tempo a pensar nas solu­ções económicas e sociais para ver se criamos mais emprego e melhoramos a vida da população.

Que parece desesperada…

Compreendo o desespero das pes­soas, não tanto a forma como as aná­lises, às vezes, são feitas, mas a avidez por condições melhores é um senti­mento humano, que é absolutamente normal e que temos de compreender.

Mas acha que é fácil compreender isso…

As pessoas também têm de ver que 12 meses é um abrir e fechar de olhos. Em 12 meses não se encontram as so­luções para os grandes problemas que o país enfrenta. Eu exerço este cargo há exatamente 13 meses, portanto, exigir do meu Executivo muito mais do que temos vindo a fazer, não pa­rece justo nem realista sequer. Não há milagres, mas mesmo assim já con­seguimos o ‘milagre’ de termos feito muito em pouco tempo.

Em sectores como a agricultura, de­pois de uma aposta desastrosa em projetos megalómanos esperava-se mais…

Estou de acordo. Prova disso é que descontinuámos a filosofia de o Es­tado empatar milhões de dólares na montagem de grandes fazendas agrí­colas para a produção de cereais e de ovos, que não deram resultados abso­lutamente nenhuns.

Há então, neste domínio, uma nova política?

A nossa decisão é que o Estado deve desfazer-se desse tipo de investimen­tos, em que não tem capacidade para os gerir e passá-los, através de con­cursos públicos, para o sector priva­do. O nosso enfoque será, portanto, a agricultura familiar sem prejuízo de esta poder coabitar com os empresá­rios que apostam nas grandes fazen­das privadas e que merecerão tam­bém o nosso apoio. Porém, a nossa principal preocupação será o apoio à agricultura familiar.

O nível da dívida pública, que con­some mais de 70 por cento do PIB, assusta, e a contração de novos em­préstimos ao estrangeiro é vista em certos meios com muitas reservas. O ceticismo prevalecente é ou não justificado?

A respeito da dívida, costumo dizer que os Estados só se desenvolvem com dívida. Ninguém se desenvol­ve só com o seu dinheiro. Grandes potências são grandes devedoras e desenvolvem-se com o dinheiro que lhes é emprestado. Portanto, Angola não é exceção, e o problema da dívi­da não é a dívida em si mesmo, mas não ter capacidade para reembolsar os valores da dívida nos prazos acor­dados. Desde que exista essa capaci­dade de pagar a quem devemos, não tenho medo do endividamento. Des­de que este esteja dentro dos limites aceitáveis em termos de capacidade de reembolso, nós não vemos aí um problema.

Porque é que que os chineses fazem agora novas exigências para empres­tar dinheiro Angola?

Antes mesmo de ir à China, difun­diu-se a ideia de que íamos buscar mais de 10 mil milhões de dólares. No regresso, circulou a notícia de que tínhamos conseguido apenas dois mil milhões de dólares. Tudo informações não autorizadas. A ver­dade é que da China trouxemos per­to de seis mil milhões de dólares de fontes diversas.

Por parte dos chineses há agora no­vas exigências…

Em relação à maior ou menor exi­gência nas condições de concessão de créditos, o dono do dinheiro está sempre no direito de impor condi­ções. E se você precisa do dinhei­ro dele, discute e negoceia, e no fim diz concordo e vamos assinar, ou não concordo e vai bater a outra porta.

Em Davos, Christine Lagarde abriu as portas do FMI para ajudar Angola. No passado, este era um cenário im­pensável. Por que razão não hesitou agora em aceitar as receitas do FMI?

E por que razão haveria de evitar?

Pose Joâo Lourenço fotografado na passada quinta-feira no Palácio da Cidade Alta, em Luanda

Porque esta foi sempre a política do seu antecessor…

Mas eu não tenho de seguir religio­samente o que se fez no passado. Eu tenho de analisar com os meus pró­prios olhos, com o meu próprio racio­cínio e com os elementos que tenho à mão, o que considero melhor para o país. Angola é parte do FMI e se tem a possibilidade de obter financiamen­tos em condições melhores do que as que tem conseguido até aqui, acho absolutamente lógico ir buscar di­nheiro ao nosso próprio banco.

Vê nisso vantagens?

Até a presente data, Angola foi buscar financiamentos a vários países, quase sempre com garantia de petróleo, que é uma condição gravosa, que também já tive oportunidade de denunciar. Estamos neste momento a dar passos para, daqui para a frente, evitarmos ao máximo a contração de dívidas com garantia de petróleo. Portanto, vamos renegociar com os países com quem temos contratos com garantia de petróleo.

Renegociar?

Sim, mas não estou a dizer que va­mos pôr fim, de forma abrupta, a es­ses contratos. Há regras, mas não é segredo para ninguém que é nossa intenção passarmos a agir da forma que é normal, ou seja, passarmos a recorrer ao crédito sem garantia de petróleo. Já o conseguimos com os eurobonds, e vamos conseguir agora com o FMI. O caminho a seguir, da­qui para a frente, será esse. Ou seja, vamos deixar de utilizar o petróleo como garantia de qualquer finan­ciamento. Relativamente ao FMI, es­tando diante de melhores condições do que as habituais, só temos de ba­ter palmas e ponderar se temos ca­pacidade para devolver o dinheiro emprestado.

No final do último congresso do MPLA, José Eduardo dos Santos des­pediu-se da massa militante com um discurso seco e muito distante. Em resposta, o senhor levou para a cerimónia de encerramento dois dis­cursos. Porque optou por uma versão verdadeiramente demolidora para a imagem de José Eduardo dos Santos?

Só levei um discurso. Foi demolidor? É a sua opinião. Foi o discurso pos­sível e adequado à ocasião. Um dis­curso corajoso e realista. Se alguém entendeu que foi demolidor é livre de pensar assim…

Neste momento como são as suas relações com o antigo Presidente?

São normais.

Ou cinicamente normais?

Normais! Embora considere que não devemos falar aqui nesta entrevista só de uma pessoa e da sua família, mas do país.

Pois bem, o país viu-o bater-se com a Justiça de Portugal para ob­ter a transferência para Angola do processo judicial movido contra o antigo vice-presidente, Manuel Vicente. Como está a decorrer este processo?

Está no Ministério Público. A Justi­ça têm os seus timings. Eu não pos­so influenciar nem para andar mais rápido nem mais devagar. Aguarde­mos, portanto, pelo desfecho.

Depois disso, afastou-o do Bureau Político do MPLA. Porquê?

Não foi o único. Se tivesse sido o úni­co talvez se justificasse a pergunta. Havia necessidade de renovar o Bu­reau Político e, para entrarem novas figuras, alguém tinha de sair. Foi o que aconteceu. Eu não tenho de jus­tificar um a um o motivo pelo qual saíram. Teria de o fazer em relação aos dirigentes históricos, ao antigo secretário-geral e a outros dirigen­tes. Ora em política não é assim.

O que fez em defesa de Manuel Vi­cente, fá-lo-á relativamente a ou­tros angolanos?

Acho que há aqui um equívoco. Em momento algum defendemos Manuel Vicente. O que Angola fez foi defen­der a necessidade de um país amigo, que é Portugal, respeitar o acordo ju­diciário existente entre os dois países. E uma vez que o acordo está em vigor, só havia duas saídas: ou denunciá-lo, se uma das partes entendesse que já não se revia nele, ou cumpri-lo.

O nome de Manuel Vicente pesou…

O que fizemos foi chamar a atenção para a necessidade do cumprimen­to desse acordo, independentemen­te de quem se tratasse. No caso con­creto era Manuel Vicente, mas pode­ria não ser. Pesou-se, obviamente, o cargo que Manuel Vicente ocupava. Não estou a ver que o vice-presiden­te da República de um país estives­se a contas com a Justiça de um ou­tro país, e que as autoridades do seu país não reagissem. Vamos colocar a questão de outra forma. Imagine que um ex-primeiro-ministro português tinha um problema com a Justiça an­golana, e que Angola fizesse finca-pé para ser julgado aqui. Qual teria sido a reação de Portugal, da União Eu­ropeia e do mundo? Esta pergunta ninguém a faz, independentemente do nome. Nós não agimos em defe­sa de um cidadão, mas em defesa do Estado angolano e da necessidade de um outro Estado respeitar acor­dos firmados anteriormente. Não se queira, pois, escamotear a verdade dizendo que se defendeu o cidadão fulano de tal. Não foi o cidadão fula­no de tal que eu defendi. Defende­mos apenas a necessidade de vermos respeitados compromissos assumi­dos pelos dois Estados.

Deu recentemente sinais condu­centes à reabilitação política de antigos dissidentes do MPLA, como Mário Pinto de Andrade ou Viriato da Cruz. O que vai fazer em relação aos que estiveram envolvidos na intentona de 27 de maio?

Estão enquadrados, não direi todos, mas parte deles estão enquadrados de uma forma natural. Não vou citar nomes, mas ao longo de anos muitos deles chegaram a ministros.

É uma ferida completamente cicatrizada?

Não diria que está completamente ci­catrizada. É um fenómeno que deve merecer um tratamento ponderado. Cada fenómeno é um fenómeno. Os casos da “Revolta do Leste” ou da “Revolta Ativa” tiveram contornos diferentes dos de 27 de maio.

Até que ponto é que esta abertu­ra política será extensiva também à figuras do nacionalismo angolano pertencentes a outros partidos po­líticos que não apenas o MPLA?

Se quer saber se podemos algum dia nomear figuras independentes, de alguma forma isso já está a aconte­cer. Pode não ter sido necessaria­mente para o cargo de ministro ou de secretário de Estado, mas em outras funções do Estado ou em empresas públicas já colocámos pessoas que não são militantes do MPLA.

À imprensa angolana disse em ja­neiro que o presidente do MPLA não tinha de ser necessariamente o Presidente da República. Estaria disposto a promover a mudança da Constituição, diluir os superpo­deres atualmente concentrados na figura do Presidente da República e admitir candidatar-se sem a alçada do MPLA?

Em primeiro lugar, a Constituição da República não diz que o Presidente da República deve ser necessaria­mente o presidente de um partido. Se for só por essa razão, não vejo ne­cessidade de se mexer na Constitui­ção. A Constituição aboliu apenas a figura dos candidatos independen­tes. Os candidatos ao lugar de Pre­sidente da República devem ser de um partido político, sem necessa­riamente serem o seu presidente. No nosso caso, tem sido prática ao lon­go de décadas o Presidente da Repú­blica ser o presidente de um partido, que por sinal tem sido o mesmo, mas não é por força da Constituição.

Então não admite, a prazo, rever a Constituição?

Se for por essa razão, não!

Independentemente da razão, há, no entanto, uma crítica vinda de alguns círculos do próprio MPLA e que tem que ver com os superpode­res constitucionais herdados do seu antecessor…

Mas quem tem de admitir não sou eu, é a própria Constituição. A Constituição diz que passados cin­co anos após a sua aprovação, em determinadas condições e se houver razões para isso, por a iniciativa do Presidente da República ou de pelo menos 1/3 dos deputados no exercí­cio das suas funções, a Constituição pode ser alterada, mas não quer di­zer que tenha de de ser necessaria­mente alterada. É preciso que haja razões para tal.

Admite que o Presidente da Repú­blica está munido de superpoderes constitucionais?

Tem de haver um debate interno, e se o meu partido ou qualquer outro chegar à conclusão de que há ra­zões plausíveis para propor a revi­são da Constituição, podem fazê-lo, a Constituição permite-o. Não serei eu a impedi-lo.

Sempre se pode, portanto, diluir os atuais poderes presidenciais?

É preciso que a proposta seja feita pelo menos por 1/3 dos deputados, e que a deliberação seja tomada por uma maioria qualificada de pelo menos 2/3. O partido político que achar que tem força para fazer isso ou que pode mobilizar outras for­ças para se juntar a essa causa, que o faça. Se, evidentemente, tiver ra­zões para o fazer, porque ninguém faz a revisão de uma Constituição por mero capricho. Mal estaríamos se caíssemos na tentação de alterar a Constituição a cada cinco anos só porque ela assim permite. Se as leis ordinárias não são alteradas to­dos os dias, imagine a Constituição! Os religiosos ainda não mudaram a “Bíblia” e, para nós, a nossa bíblia é a Constituição…

No plano regional, Angola tem à prova a chamada “Operação Trans­parência”, que resultou na expul­são de milhares de imigrantes clan­destinos, que se dedicavam ao ga­rimpo de diamantes. Alguns desses imigrantes surgiram com cartões de eleitores. Como justifica isso?

Todos vimos nas televisões dois ou três cidadãos exibindo cartões de eleitores. De longe deu para ver que eram cartões de eleitores, não dava era para provar que aqueles cartões eram das pessoas que os exibiam. Podiam ser cartões de verdadeiros angolanos, uma vez que os imigran­tes viviam numa comunidade com angolanos, muitos deles até tinham angolanas como mulheres. É um facto que apareceram dois ou três com cartões de eleitores, mas daí a concluir que esses cartões lhes pertenciam, alguém tinha de ver mais de perto as fotografias e outros pormenores.

Na sequência da expulsão de milha­res de congoleses, o Governo an­golano não teme uma ação de reta­liação por parte das autoridades da República Democrática do Congo?

Quando se diz congoleses, é por mero acaso, pois os cidadãos es­trangeiros que caíram nas malhas da Justiça, na sua maioria eram congoleses. Esta operação nunca teve como alvo cidadãos de nenhu­ma nacionalidade em concreto. Por isso, pensamos que é injusto que as autoridades de qualquer país visa­do pensem em retaliar, uma vez que não existem cidadãos angolanos a pilhar as riquezas minerais de ne­nhum país africano. Se houver an­golanos nestas condições e se esses países os expulsarem, nós não va­mos reprovar a atitude das auto­ridades dos países que agirem em defesa dos próprios interesses. Te­remos a hombridade suficiente para reconhecer que se houver angolanos com esse tipo de práticas, então su­jeitam-se também a ser expulsos…

O que espera da “Operação Resgate”?

Esta operação está a ser intencio­nalmente adulterada por determi­nadas pessoas. Ela visa, em vários domínios, o resgate dos bons valo­res da nossa sociedade e não tirar o pão a ninguém ou mandar as pes­soas para o desemprego. Pretende­mos repor a ordem pública, porque é inadmissível o exercício de comér­cio informal em passagens aéreas. Dizem que Angola é África e em África é assim, mas nós não aceita­mos, porque não é esta a África que aspiramos deixar aos nossos netos. O que pretendemos é conduzir as pessoas que se dedicam ao comér­cio para os locais mais adequados, que não dificultem o trânsito e a vida dos cidadãos e que garantam a segurança dos utentes.

Depois da vinda do primeiro-mi­nistro português, António Costa, a Luanda, o que leva na bagagem pa­ra elevar o nível de cooperação com Portugal?

Não vamos iniciar uma nova rela­ção, vamos dar continuidade a uma relação de cooperação que data pra­ticamente dos primeiros dias da in­dependência. O que vou fazer agora é procurar elevar ainda mais o nível de uma cooperação que pretende­mos mais salutar e coesa.

Que áreas pretende priorizar?

Vamos procurar cativar os investi­dores privados portugueses em to­das as áreas onde for possível. Ali onde os investidores portugueses entenderem que podem ganhar di­nheiro e deixar bens e serviços, nós agradecemos. Mas estou a referir­-me a investidores e não a comer­ciantes, não aqueles que queiram apenas vender coisas a Angola.

Acredita que Portugal vai ajudar Angola a repatriar o capital que reclama?

Acho que sim, Portugal e outros países. A relação de Portugal com Angola é de tal ordem que talvez mais facilmente possa colaborar connosco. Mas acredito que as ga­linhas não tenham posto os ovos só em Portugal. Devem estar espalha­dos pelo mundo fora…

Um dos sectores mais críticos em Angola é a fraca qualidade dos pro­fessores. Em que medida Portugal pode ter um papel determinan­te para ajudar Angola a suprir essa lacuna?

Portugal pode e já está a ajudar, uma vez que ao longo destes anos temos formado muitos quadros em Portu­gal. Também há a possibilidade de muitos técnicos portugueses virem trabalhar para Angola na área da Educação e também da Saúde. Por­tugal tem muitos quadros da Saú­de que estão à procura de outras oportunidades e nós atrevemo-nos a convidá-los a vir trabalhar para Angola.

Sendo a Galp um fruto apeteci­do, acha que a Sonangol pode vir a aumentar a sua participação na multinacional portuguesa por via de uma eventual aquisição da par­ticipação de Isabel dos Santos, de resto, suportada pelo Estado angolano?

Vejo muito pouco provável essa pos­sibilidade, porque em qualquer ato de compra e venda tem de haver vontade recíproca tanto de quem quer vender como de quem quer comprar. E a tendência é precisa­mente contrária. O Executivo já anunciou que a Sonangol deve re­tirar-se de grande parte dos negó­cios e das participações em que está envolvida e que não têm muito que ver com o seu core business.

Mas no caso da Galp…

Sim, já vou chegar aí. Neste caso, é verdade que está dentro do seu core business, mas não deixa de ser uma dispersão e, por esta razão e porque a tendência é esta, é muito pouco provável que a Sonangol se interes­se em ter uma participação na Galp pela via que acaba de citar. Não te­mos nada contra os portugueses do grupo Amorim, antes pelo contrá­rio, mas num casamento deve ha­ver vontade recíproca entre o noi­vo e a noiva, ambos têm de estar interessados.

Ou seja, nem Isabel dos Santos está interessada em vender nem a So­nangol em comprar…

Já respondi…

O mesmo é válido para o caso do Banco Millennium em Portugal?

Com a resposta que acabei de dar, não estou a dizer que vamos sair amanhã. Estou a dizer apenas que a tendência é essa…

Até que ponto a mudança de regime político no Brasil poderá afetar as relações entre os dois países?

As relações entre os Estados não se devem confundir com as relações entre Executivos, e o que se pas­sou no Brasil foi uma mudança de Executivo mas não uma mudança de regime. Teremos de saber lidar com a nova realidade. As relações de cooperação entre os dois países vão continuar. Se serão nos mes­mos moldes? Se o BNDS vai con­tinuar a dar financiamento a An­gola nos mesmos moldes? O que poderemos dizer é que vamos reti­rar a componente do petróleo e va­mos renegociar. Mas a renegociação não significa o fim das relações de cooperação.

Acredita na vitalidade da CPLP pa­ra dinamizar a cooperação entre os países de língua portuguesa?

Acredito no potencial da CPLP, em­bora reconheça que a realidade está muito aquém. Entre o que é a CPLP hoje e aquilo que ela pode vir a ser, dependendo da vontade dos Esta­dos-membros, existe uma diferença — hoje é uma coisa e amanhã pode vir a ser bem melhor se nos sentar­mos para repensar bem o que pre­tendemos dela.

Como exímio jogador de xadrez que é, quando será o seu próximo xeque-mate?

Não posso revelar mas não tarda… b

Fonte: Jornal Expresso[:]

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